01.02.2015
Antes uma atividade muito mais relevante para a economia da cidade, a pesca na região está em decadência
Sob o sol ainda ameno do meio da manhã de sábado, um grupo de dez a quinze pescadores da Praia do Mucuripe faz reparos em jangadas que em breve tornarão a enfrentar o mar. Acompanhados por pintores e carpinteiros há décadas habituados ao ofício, consertam mastros, restauram velas e tentam renovar a firmeza e a beleza de embarcações cujos nomes refletem a fé em figuras religiosas ou pessoas queridas.
Mais do que simples zelo ou cautela, a cena, que remete a uma época na qual a atividade pesqueira possuía um papel muito mais relevante na economia de Fortaleza, simboliza o esforço constante de pessoas que têm como missão tentar resistir, ao mesmo tempo, à ação do mar e do tempo. Composto sobretudo por profissionais acima dos 45 anos e por quase nenhum jovem abaixo dos 25, o grupo de pescadores que hoje atua no Mucuripe se autodenomina "em extinção".
Um dos motivos, aponta o pescador José Bernardo da Silva, 64, é a maior dificuldade para encontrar peixes e frutos do mar na região, após a pesca predatória das últimas décadas. "Antes, você ficava no mar dois, três dias pra pegar peixe e voltava. Agora, tem que ficar sete, até oito dias", compara.
A principal razão, porém, para a queda no número de pescadores, diz Bernardo, é o leque maior de oportunidades que os jovens têm hoje, em comparação com o auge da atividade na Capital. Ele conta ter tido os primeiros contatos com a profissão aos oito anos de idade, por influência de um tio e pela necessidade de complementar a renda - ou pelo menos a alimentação - da casa onde vivia com a mãe e os irmãos.
Mar desprezado
Àquela época, a elite de Fortaleza desprezava o mar. "Não tinha prédio nenhum aqui", frisa, enquanto observa os diversos condomínios cuja construção acompanhou desde a juventude. Inaugurada em 1963, a Avenida Beira-Mar assistiu à lenta substituição do "cardume" de jangadas, de um lado, pelo conjunto de condomínios que atualmente a cerca, na outra margem. A especulação imobiliária criada naquela área foi um dos fatores que afastou os pescadores.
As transformações urbanísticas, entretanto, não foram as únicas a marcar o ambiente. O aumento de renda da população e a maior oferta de vagas em outras áreas fez com que os jovens buscassem profissões menos sacrificantes e mais lucrativas. Embora tenha sobrevivido a partir da pesca durante toda a vida, Bernardo conta não querer que nenhum filho ou neto siga o mesmo ramo. "O mar acaba com você. Primeiro, acaba com seus joelhos, por causa da posição que você tem que ficar. Segundo, acaba com seus olhos. Desse olho aqui eu já sou quase cego", afirma, apontando para o lado direito do rosto.
Outra mudança que teve influência sobre a rotina dos pescadores foi o aumento da violência urbana e do tráfico de drogas na região. Embora costumem estar rodeados pelo cenário lúdico composto por barcos de passeio, jet skis e praticantes de diversos esportes, no calçadão e no mar, os pescadores do Mucuripe atualmente dividem espaço com usuários de drogas e praticantes de furtos que usam embarcações danificadas como moradias improvisadas.
Nesse contexto, a redução do número de pescadores do Mucuripe assume um ar melancólico. Segundo pessoas que trabalham no local, não são raros os casos de pescadores dependentes de crack, por exemplo. A esse aspecto de decadência, somam-se outros profissionais, a exemplo de carpinteiros, pintores e comerciantes, os quais, também já em idade de se aposentar, parecem despedir-se de atividades para as quais não haverá substitutos naquela região.
Sentimento conflitante
Os desgastes e riscos do ofício, que obriga os profissionais a navegar sem a certeza de que voltarão para a terra firme levaram o pescador Francisco de Assis Soares, 48, a fazer um curso de pizzaiolo, em uma fábrica próxima, seis anos atrás. Contudo, mesmo após o curso, não conseguiu vaga em nenhum estabelecimento, relata, por não possuir Ensino Fundamental completo. Os estudos, acrescenta, foram interrompidos devido à atividade no mar, ainda na infância.
Apesar de todas as frustrações, porém, o pescador diz saber que, caso abandone de fato a pesca, a saudade não o deixará se desligar totalmente do mar. "Eu sei que eu vou sentir isso. Existem as coisas boas também. Você comer um peixe fresquinho, que você mesmo pegou ali e assou na hora, é muito bom".
Mantendo esse apego à atividade que durante décadas lhes garantiu o sustento, ainda que a custo da saúde durante a velhice, os profissionais ligados à pesca permanecem embelezando o Mucuripe. A cada manhã, martelam, serram, limpam, pintam, amarram, preparam-se, atrevem-se e navegam - sem saber até quando.
Filiações à Colônia de Fortaleza vêm caindo
A maior facilidade para se inserir em outras atividades e os obstáculos enfrentados na pesca artesanal tem feito com que o número de novos pescadores cadastrados na Colônia de Pescadores Z-8, que abrange Fortaleza, tenha caído a cada ano. Conforme o presidente da associação, Possidônio Soares Filho, a cada mês, uma média de cinco profissionais se cadastra na Capital. Grande parte, porém, se refere a trabalhadores que já exerciam o ofício e decidiram se formalizar para desfrutar dos benefícios.
Conforme Possidônio, o número de filiações dez anos atrás, quando assumiu a presidência da colônia, era pelo menos quatro vezes maior, chegando a cerca de 20 trabalhadores. O presidente disse não poder precisar quantos cadastros têm sido feitos para profissionais que atuam no Mucuripe, mas afirma que a procura naquela área tem sido "muito pequena".
Para tornar a pesca no Estado mais atrativa e rentável, Possidônio defende uma maior intervenção do poder público buscando aumentar o valor do produto, através de uma maior qualificação dos profissionais. "O pescador tem que saber valorizar o pescado em terra, tem que saber que peixe ele quer".
A Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Município (SDE) informou que prevê realizar um diagnóstico, na orla da cidade e cidades vizinhas, para identificar que ações deverá tomar em relação aos pescadores. Ainda não há, entretanto, uma data definida para a realização do levantamento.
João Moura
Repórter
A urbanização e as drogas acabando com a figura/profissão do pescador em Fortaleza. Mais um símbolo, tão divulgado para os turistas, que vai deixando de existir. Uma pena, mesmo.
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