sábado, 17 de janeiro de 2015

Filosofia analítica: Wittgenstein e o argumento da linguagem privada

Fonte: http://educacao.uol.com.br/
José Renato Salatiel, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
18/05/200919h07

O filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951) é conhecido por ter desenvolvido duas filosofias bem distintas em sua vida, uma exposta na obra Tratactus Lógico-Philosophicus, de 1921, e outra em Investigações filosóficas, publicado postumamente, em 1953.

Os dois livros são representativos no pensamento de Wittgenstein por exporem duas teorias da linguagem bem diferentes. A primeira, de que a linguagem figura o real, influenciou os positivistas lógicos do Círculo de Viena, enquanto a segunda, de que a linguagem expressa o real em suas funções práticas, contribuiu para mudar os rumos da filosofia analítica, na Escola de Oxford.

Uma maneira interessante de verificar essa distinção é analisando o chamado "argumento da linguagem privada", que Wittgenstein, apesar de nunca tê-lo chamado com esse nome, trabalha em Investigações filosóficas.

Linguagem e percepção
Para a tradição filosófica desde Descartes, a linguagem se refere a um conjunto de dados dos sentidos. A frase "dor de dente", assim, se refere a uma sensação de dor que a pessoa sente em algum dente.

Mas como saber se o que estou sentindo e chamo de "dor de dente" corresponde àquela mesma sensação que você teve e que também chamou de "dor de dente"? Ou o que você chama de "amor", será que é o mesmo referente que eu designo quando uso essa palavra? Ou ainda, quando um repórter na TV pergunta para uma pessoa o que ela está sentindo, depois de sobreviver a uma enchente, por exemplo, o relato corresponderia realmente às mesmas sensações que teríamos se tivesse acontecido conosco?

É razoável supor que podemos usar palavras de forma equivocada, como quando digo que uma cor é "lilás" e outra pessoa diz "roxo". Estamos tendo a mesma percepção do espectro de luz? Diz o filósofo: "O essencial das vivências privadas não é que cada um possua seu exemplar, mas que nenhum saiba que se o outro tem também isto ou algo diferente. Seria pois possível a suposição - ainda que não verificável - de que uma parte da humanidade tenha uma sensação do vermelho e outra parte uma outra sensação" (IF § 272).

Como aprenderíamos a ligar o nome a uma coisa, se o nome fosse inventado tendo como base a minha percepção das coisas? Como saber que estamos falando da mesma coisa? Wittgenstein dá ainda o exemplo da caixa contendo um besouro: "Suponhamos que cada um tivesse uma caixa e que dentro dela houvesse algo que chamamos de 'besouro'. Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro apenas por olhar seu besouro. Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa" (IF § 293).

Poderia também inventar um nome completamente distinto para as coisas de modo que somente eu compreendesse aquilo, como uma linguagem privada que não pudesse compartilhar com o mundo. Um vocabulário e uma gramática desconhecida dos demais, um código próprio que somente quem o criou pudesse compreender.

O argumento da linguagem privada de Wittgenstein nega que tal coisa seja possível. Basicamente, faz isso por rejeitar a noção de que as palavras tenham como referentes diretos as sensações, que elas representariam.


Linguagem e comportamento
Para o "segundo" Wittgenstein, não aprendemos que a palavra "dor de dente" significa uma sensação de dor de dente, mas aprendemos a expressar um comportamento. Em outras palavras, uma criança não aprende a essência de um dado sensível representado por um signo (a palavra "dor", por exemplo), mas como expressar um determinado comportamento, um uso prático.

Vejam o que Wittgenstein diz: "Como as palavras se referem a sensações? (...) Por exemplo, da palavra 'dor'. Esta é uma possibilidade: palavras são ligadas à expressão originária e natural da sensação, e colocadas no lugar dela. Uma criança se machucou e grita; então os adultos falam com ela e lhe ensinam exclamações e, posteriormente, frases. Ensinam à criança um novo comportamento perante a dor" (IF, § 244).

Quando uma criança sente dor, ela reage com uma expressão natural de dor, o choro. Mas fica muito difícil para uma mãe, por exemplo, saber se uma criança que chora está com dor de ouvido, cólica ou apenas irritada e com sono.

Com o tempo, a criança é adestrada a substituir uma expressão natural por uma outra, simbólica. Assim, quando sente dor, usa uma frase para expressar a dor, que substitui ou complementa um grito ou choro, dizendo "Estou com dor de ouvido" ou "Minha barriga dói".

Não somos, deste modo, ensinados a usar uma palavra para significar um objeto, mas um uso linguístico, simbólico e convencional, que pode substituir uma expressão natural para tais sensações.

Para Wittgenstein, o significado de uma linguagem é dado em seu uso, e como são usos diferentes, ele fala em jogos de linguagem. Não aprendemos o nome das coisas, mas um comportamento expressivo que substitui o comportamento natural.

Para concluir, a solução para o problema da caixinha do besouro: "Mas, e se a palavra 'besouro' tivesse um uso para essas pessoas? Neste caso, não seria o da designação de uma coisa. A coisa na caixa não pertence, de nenhum modo, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa poderia também estar vazia. Não, por meio desta coisa na caixa, pode-se 'abreviar'; seja o que for, é suprimido. Isto significa: quando se constrói a gramática da expressão da sensação segundo o modelo de 'objeto de designação', então o objeto cai fora de consideração, como irrelevante" (IF § 293).

Isso quer dizer que não importa a sensação que tenhamos - a suposta "essência" de nossa linguagem -, mas simplesmente sua função, seu uso no cotidiano.

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