Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira
* Publicado no Caderno MIX - Idéias - Jornal "Diário de Santa Maria - Edição de 31/03 - 01/04/2007
"Livre do real, você pode fazer algo mais real que o real: o hiper-real” (Jean Baudrillard).
Cultura imagética; espetáculo; sinal-valor; mercadoria-signo; lei do código; sedução; maioria silenciosa; excrescência, e muitos outros conceitos e expressões que conectados ao conceito-chave de “simulacro”, remetem-nos imediatamente a um nome: Jean Baudrillard. Juntamente com Jacques Derrida, Michel Foucault, Jean-François Lyotard, Cornelius Castoriadis e Edgar Morin, entre outros, destacou-se como representante da chamada “Nova Teoria Francesa”, caracterizando-se assim como um teórico interdisciplinar, e como tal, seus escritos sempre trouxeram a marca das interconexões entre economia e política, cultura e sociedade, colocando-o para além dos marcos científicos tradicionais.
Nos debates sobre a pós-modernidade, Baudrillard passou a ser reconhecido como o teórico do regime do “simulacro” através de sua obra intitulada “Simulacros e Simulação”, livro que se tornou famoso também fora do ambiente acadêmico quando foi exibido no filme Matrix, pois é dentro de uma edição deste livro que “Neo” guarda seus programas. Colaborou ainda o fato do ator Keanu Reeves dizer em suas entrevistas sobre o filme, que havia lido “Simulacros e Simulação”. Foi o que bastou para que o nome de Baudrillard com sua teoria sobre o simulacro fosse rapidamente associado ao filme. Ele não gostou desta associação, e na época ainda comentou que tanto os responsáveis pelo filme, como Reeves, “se leram meu livro, não entenderam nada”.
A interpretação distorcida do pensamento de Baudrillard feita em “Matrix”, é bastante comum entre os leitores universitários bem como entre muitos admiradores de seus trabalhos. Na entrevista sobre este filme, Baudrillard foi objetivo: "existem filmes melhores que este sobre o mesmo tema. "Truman Show", por exemplo, é mais sutil. Não deixa o real de um lado e o virtual de outro, como "Matrix". Esse é o problema." Essa é a confusão.
O difícil conceito de simulacro tendo por base o “quarto estágio (o terminal) do signo”, nunca esteve relacionado com uma oposição entre simulação e realidade, entre o real e o signo, em outras palavras, nunca quis dizer irrealidade. Os simulacros são experiências, formas, códigos, digitalidades e objetos sem referência que se apresentam mais reais do que a própria realidade, ou seja, são “hiper-reais”. Como ele escreveu: “A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real”. Assim, Baudrillard entendia nossa condição como a de uma ordem social na qual os simulacros e os sinais estão, de forma crescente, constituindo o mundo contemporâneo, de tal forma que qualquer distinção entre “real” e “irreal” torna-se impossível.
Em recente entrevista por ocasião da morte de Baudrillard, o importante pensador da pós-modernidade e crítico da globalização, Zygmunt Bauman, destacou a importância do conceito de simulacro entre tantos outros trabalhados por Baudrillard. Concordo com ele. Na verdade é um conceito central que configura-se como uma axiomática geral coordenadora do pensamento baudrillardiano sobre a sociedade-cultura contemporânea. Isto se evidencia no momento em que, para Baudrillard, a reprodução do real acontece em qualquer esfera do sistema. Tudo se tornou um simulacro: o mundo do trabalho, o capital, a etnologia, o teatro, a arte, a pedagogia, a psiquiatria, a política, o sexo, etc.. Como ele concluiu em “simulacros e simulações”: “tudo se metamorfoseia no seu termo inverso para sobreviver na sua forma expurgada.Todos os poderes, todas as instituições falam de si próprios pela negativa, para tentar, por simulação de morte, escapar à sua agonia real”.
Portanto, vivemos em uma nova fase da história, em um novo mundo organizado em torno de simulacros e simulações, no qual somos alcançados, ininterruptamente pelo jogo de simulacros, o que transforma radicalmente nossas experiências de vida, destrói os sentidos e as significações, e esvazia completamente o conceito de realidade. Sob este aspecto, Baudrillard destaca como força constitutiva por excelência do jogo de simulacros, os meios de comunicação. Ele enfatiza que “temos que pensar nos medias como se fossem, na órbita externa, uma espécie de código genético que comanda a mutação do real em hiper-real”.
Em seu livro “A transparência do mal”, reafirmou que as novas tecnologias de informação, comunicação e entretenimento, confrontam o indivíduo cotidianamente com a hiper-realidade, o que acaba gerando mais angústias, dúvidas e medos. Neste mundo hiper-real das profundas revoluções tecnológicas, Baudrillard nos deixou complexas interrogações, como por exemplo: “sou um homem ou uma máquina?”; “sou um homem ou um clone virtual?”; “como podemos ser humanos?”. Suas respostas se encaminham no sentido da constituição da imensa rede de simulacros.
Em sua perspectiva, o ciberespaçotempo constitui-se como um terreno cibernético que além de minar a distância entre o metafórico e o real, subordina totalmente os indivíduos. Sob seu ponto de vista, não estamos preparados para o grau de desenvolvimento a que chegou o sistema tecnocientífico, e ao buscarmos mais informação e comunicação acabamos agravando nossa relação com a incerteza. Foi categórico: “a revolução contemporânea é a da incerteza”.
Nas análises sobre os meios de comunicação, Baudrillard sempre deu destaque especial à televisão, a qual, segundo ele, através da produção exagerada de imagens, signos e mensagens, originou o “mundo simulacional” (ou, uma sucessão infinita de simulações que neutralizam umas às outras), que está intimamente relacionado com os significantes desconexos e com uma realidade totalmente estetizada no qual há uma perda da noção de realidade concreta. Neste mundo, as técnicas para produzir ilusões são sofisticadas (exemplo, a realidade virtual), através delas os indivíduos mudam de código muito rapidamente, anulando toda e qualquer relação com o passado.
O poder de dominação, de fascínio, de hipnotização da televisão sobre os indivíduos, é expresso em seu dizer irônico que “a imagem do homem sentado, contemplando num dia de greve sua tela de televisão vazia, constituirá no futuro uma das mais belas imagens da antropologia de nosso século”. Entendia os meios de comunicação de massa como veículos do fascínio bruto do ato terrorista, ou seja, na medida em que caminham para o fascínio são eles próprios terroristas, são manipuladores em todos os sentidos (uma vez que carregam consigo o sentido e o contra-sentido). Afirmou sem impossível encontrar um bom uso dos media, em suas palavras: “ele não existe”.
A multiplicação da quantidade de sinais e espetáculos pelos meios de comunicação, produz uma proliferação do que ele chamou de “sinal-valor” (uma “economia política do signo” – expressão que nomeia outra importante obra de Baudrillard), ou seja, a marca, o prestígio, o luxo e a sensação de poder tornam-se uma parte crescentemente importante do artigo de consumo e não somente seu “valor de uso” ou “de troca” (como na teoria Marxista). Chegamos assim ao que considero como o enfoque principal do pensamento de Baudrillard. A inter-relação de seus conceitos, reflexões e obras em torno, não somente da descrição (como querem muitos), mas também de uma crítica sem concessões ao processo de consumo contemporâneo.
Na obra “A sociedade de consumo”, destaca que a característica de nossa sociedade-cultura é, antes de tudo, a de ser uma sociedade-cultura de consumo (idéia retomada em todos os seus escritos), que reduz o indivíduo à condição de consumidor como conseqüência da automatização do sistema de produção. Defendia que era impossível negar que nos dias atuais existe uma dinâmica de consumo diferente, que entre outras coisas pode ser representada através de seu slogan de que “já não consumimos coisas, mas somente signos”. Na “época do signo”, produz-se, simultaneamente, a mercadoria como signo e o signo como mercadoria.
Para ele, a transformação da mercadoria em signo foi o destino do capitalismo no século XX, e o objetivo desta sociedade-cultura é apresentar, cada vez mais, um grande número de signos novos, imagens e experiências para que o indivíduo deseje e consuma. Nesta direção, condenou o processo de estetização de todas as coisas que ocorre na atual fase do capitalismo, pois como dizia, “até o mais marginal, o mais banal, o mais obscuro estetiza-se”. Deixou transparecer que entendia a publicidade como a arte oficial do capitalismo, uma vez que todas as formas atuais de atividade voltam-se e esgotam-se nela. Por isto a forma publicitária impôs-se e desenvolveu-se à custa de todas as outras linguagens.
Baudrillard também salientou que os códigos e modelos de marketing e lógica semelhantes geraram uma produção infinita e instável de estilos de vida, dissolvendo-se assim o objeto antigamente conhecido como sociedade; as estruturas sociais de classe, gênero e etnia são reduzidas a imagens do social e vividas através do meio imagístico do estilo de vida. A estetização que fascina, manipula desejos e gostos e impulsiona na direção do consumo, apresenta a falsa idéia de que nas práticas consumistas está a resolução dos problemas da vida, bem como a transformação da insignificância do mundo. Observou que os “meios realizadores” estão sempre em coisas diferentes às expectativas geradas, e, ainda segundo ele, pode ser até que atendam satisfações mais superficiais, mas jamais aspectos profundos da vida humana como geralmente propõem.
Sob este aspecto Baudrillard radicalizou ao desenvolver a idéia que os indivíduos, imersos nas práticas e relações de consumo, não combatem nem condenam, mas exploram ao máximo as tendências figuradas, as sensações imediatas, as experiências ardentes e isoladas, as intensidades da sociedade-cultura de consumo e, sem procurar significados coerentes, obtém prazer estético nestas intensidades superficiais.
Tendo por base as relações político-econômicas e socioculturais contemporâneas, constato e concordo com as idéias de Baudrillard sobre uma sociedade-cultura de simulacros e simulações; sobre o privilégio dado pelo capitalismo pós-moderno à produção de signos e imagens ao invés das próprias mercadorias; sobre a desestabilização da noção original das coisas e das ilusões culturais empreendidas pela publicidade, pela mídia e pelas técnicas de exposição dos produtos; também concordo que o consumismo está moldando as relações entre os indivíduos na pós-modernidade.
O grande problema para mim com o “teórico do simulacro” é que, seus argumentos para tornar preponderante a sua hipótese do objeto-signo, giram em torno da dominação total e negatividades das novas tecnologias e da televisão, e os indivíduos são reduzidos à condição de consumidores passivos. A partir destas idéias, Baudrillard faz uma leitura do social em “À sombra das maiorias silenciosas”, que pode ser entendida como pessimista e determinista.
Ao caracterizar o social como um amontoado confuso, diz que este social não é nada, apenas “massas”, para então concluir que as “as massas absorvem toda a eletricidade do social e do político e as neutralizam, sem retorno. Não são boas condutoras do político, nem boas condutoras do social, nem boas condutoras no sentido geral...Elas são a inércia, a força da inércia, a força do neutro”. Enfim, não passam de “buracos negros - uma de suas metáforas preferidas para caracterizar as “massas” – em que o social se precipita”. Sobre esta leitura, Fredric Jameson disse que a compreensão de Baudrillard com relação às seduções do mercado era “dramática e paranóico-crítica”.
Faltou a este grande pensador, admitir e trabalhar as possibilidades de uma semiótica crítica que desvela as dimensões ocultas da hiper-realidade permitindo uma desconstrução do regime dos signos.
Com suas leituras e re-leituras do capitalismo de consumo, Baudrillard passou a ocupar um lugar de destaque entre os teóricos do contemporâneo. Sua análise sobre a sociedade-cultura atual, ancorada na relação simulacro-estetização da realidade-consumismo, influenciou os trabalhos de marxistas pós-modernos-críticos como Fredric Jameson e David Harvey, não obstante as diferenças teóricas e políticas. Porém não se engane o leitor, Baudrillard não era pós-moderno, muito menos “um dos pais da pós-modernidade” como muitos diziam e como foi difundido pelos recentemente pelos meios de comunicação. Repudiava a pós-modernidade como algo vazio, totalmente sem sentido, pois para ele era um campo aberto para qualquer coisa.
Paradoxalmente, suas idéias, conceitos e teorias (construídas desde os anos 60, e expressas em cerca de 50 obras), juntamente com as de Jean-François Lyotard e Fredric Jameson, tornaram-se indispensáveis nas análises, debates e entendimentos sobre a teoria e condição pós-modernas. Na verdade era conhecido como um pensador que rejeitava consensos e rótulos, não aceitando também que classificassem sua crítica de pessimista.
Seu estilo intelectual foi marcado pela ironia, e defendia que o emprego da ironia, do inverso, da falha, da reversibilidade, era a única verdadeira função intelectual (estilo pós-moderno?). Não agradou os conservadores colegas, os quais procuravam-lhe desqualificar com os mesmos adjetivos com que ele rejeitava a pós-modernidade. O certo é que seu arcabouço teórico desconstruiu velhas categorias, velhos conceitos e suas distinções (afirmando sobre a impossibilidade de sustentação dos mesmos), e com seu pensamento interdisciplinar ignorou fronteiras e hierarquias que ainda insistem em se manter no contexto universitário e educacional.
Baudrillard morreu no dia 06 deste mês. Também era fotógrafo, e justificava sua forma de escrever fragmentada como sendo pequenos retratos do mundo. Para quem não consegue “ler” suas fotografias, ou não entende seus “enquadramentos”, ou assim como eu, não curte suas “cores” demasiadamente fortes, atente para o seu princípio: “já que o mundo se encaminha para um delirante estado de coisas, devemos nos encaminhar para um ponto de vista delirante”.
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