26/07/2015
Sacerdotes e praticantes de umbanda e candomblé, religiões de matriz africana, relatam episódios cotidianos de intolerância em Fortaleza. Mas maior problema, para eles, está nas instituições
Raphaelle Batista
EDIMAR SOARES
Mãe Edna de Iansã e Pai Wagner, vítimas da intolerância e do racismo religioso
Comportamento
Imagine parar o carro para confirmar um endereço e ver a pessoa que poderia lhe dar a informação correr de medo ao ver você. Suponha que você fosse professor e, por conta da sua orientação religiosa, os estudantes se recusassem a assistir suas aulas e o chamassem de demônio. Coloque-se no lugar de uma criança que frequentou a vida inteira uma mesma escola, tirando boas notas, mas foi convidada a mudar de colégio depois que a diretoria descobriu a religião professada por ela.
Essas situações, distantes do cotidiano de muita gente, são comuns na vida de quem segue religiões de matriz africana em Fortaleza, cerca de 0,21% da população, segundo o último censo do IBGE. Aqui, apesar de os registros de violência física serem pequenos, os relatos de violência simbólica e violação de direitos cometidos por representantes do Estado se repetem.
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São
comentários maldosos na rua em função das vestimentas brancas ou das
guias exibidas em volta do pescoço (quase sempre encaradas como sinais
diabólicos), ou ainda o título de macumbeiro atribuído em tom de ofensa,
e até mesmo invasões de policiais armados aos terreiros e abordagens
desrespeitosas de fiscais de meio ambiente. As narrativas desta reportagem vêm de representantes de centros de umbanda e candomblé da capital cearense reunidos pelo O POVO na casa de Candomblé Ilê Axé Omo Tifé - Keto, no conjunto Tamandaré. Três sacerdotes dessas religiões, que contam com mais de oito mil templos em todo o Estado, segundo a União Espírita Cearense de Umbanda (Uecum), relataram casos de desrespeito motivados pela intolerância religiosa.
Mãe Valéria de Logun Edé, de 73 anos, dirige há 40 anos a casa que é uma das mais antigas da Cidade e diz que problemas com a vizinhança são novidade. Só recentemente começaram as visitas de agentes da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma). Denúncias de violação da lei do silêncio e de sacrifício de animais são as justificativas mais comuns para as fiscalizações. “Aqui era tudo maravilhoso, mas quando venderam o terreno pra construir aí”, ela aponta para a condomínio erguido vizinho ao seu terreiro, “as coisas mudaram”.
“Perguntaram se a gente bebia sangue, se comia carne crua”, diz, se referindo a algumas das perguntas que ouviu de agentes da Seuma. “Aí eu perguntei: ora, e você não come galinha à cabidela? Não come carpaccio? Que tem de crime nisso?”, completa, sobre como tratou a abordagem dos fiscais. A confusão foi ainda maior porque a visita teria ocorrido antes das 22 horas e, para acabar com o barulho, quiseram levar os atabaques, instrumentos sagrados do culto.
Mãe Edna de Iansã, que há mais de duas décadas comanda a Tenda de Iansã, no Bom Jardim, relata episódios mais graves. “Na minha casa os policiais militares entraram e tentaram levar o atabaque. Eram 21h30min, mais ou menos, eu estava trabalhando com a entidade e quando voltei dei de cara com a arma”, conta. Ela diz que os PMs não tinham autorização judicial, mas diziam apurar denúncia de sacrífico humano. Além de adentrar o terreiro de forma arbitrária, segundo ela, fizeram fotografias do espaço sem autorização. A ação ocorreu em junho passado.
Anos atrás, a casa de mãe Edna sofreu um incêndio, que segundo a perícia foi criminoso. Ainda assim, e ela atribui isso ao fato de ter ocorrido num terreiro, o caso nunca foi esclarecido pela Polícia Civil.
Discurso de ódio
Pai Wagner é o personagem que, ao baixar o vidro do carro para pedir informações, viu a mulher correr de medo dele. Professor de arte-educação, diz que foi perseguido pela diretora, católica, da escola onde trabalhava porque questionava apenas orações cristãs nos acolhimentos dos alunos e passou a dar o conteúdo da cultura africana - e suas religiões - nas aulas do 5º ao 9º ano. “Ganhei a semana quando um aluno chegou perto de mim e disse que a mãe era da umbanda. Graças às minhas aulas ele teve coragem de assumir sua religião”.
Para eles a intolerância religiosa tem relação direta com o racismo que atinge a população negra em todo o País e o discurso religioso vindo de algumas correntes evangélicas, como as pentecostais e neopentecostais, reforçado em programas de TV e até no Congresso Nacional.
“O reforço político de alguns fundamentalistas que são deputados e querem crescer com discurso de ódio é uma forma dessa intolerância se materializar”, acredita o sociólogo e militante do movimento negro Hilário Ferreira. A vice-presidente da Uecum, Tecla de Sá Oliveira, ainda atribui as atitudes de intolerância ao desconhecimento da população sobre as religiões. “Quando meu pai fundou a União, em 1967, ninguém podia nem dizer a palavra ‘umbanda’ que era preso, apanhava da polícia”, diz.
O presidente da Ormece (Ordem dos Ministros Evangélicos do Ceará), pastor Francisco Paixão, reconhece que há um “seguimento mais novo, especialmente neopentecostais, que confronta” seguidores de religiões de matriz africana. No entanto, segundo ele, a orientação pastoral dada aos evangélicos é de seguirem a máxima pregada por Jesus Cristo de amar ao próximo. “Nossa orientação é de que amem as pessoas, independentemente do que elas cultuam,do que elas fazem, do que elas adoram. O próprio criador dá ao homem a liberdade de acreditar no que ele quiser”.
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