14/02/2016
Documento fraudado é negociado a um quarteirão do prédio da Polícia Civil. "Vendedor" diz ter policiais, agentes penitenciários e guardas municipais entre seus clientes
Cláudio Ribeiro
claudioribeiro@opovo.com.br
- Anota aí teu nome completo. Bota bem direitim, viu?
Quantos dias tu quer?
A partir de que data?
Comprei um atestado médico na calçada da rua do Rosário, no Centro. A um quarteirão do prédio da Polícia Civil. Mas não estive com nenhum médico, não fui examinado por ninguém. Era um atestado falso. Foi mais fácil do que pensei, infelizmente. Da primeira abordagem que fiz até estar com o documento fraudado em mãos, gastei menos de uma hora.
Quantos dias tu quer?
A partir de que data?
Comprei um atestado médico na calçada da rua do Rosário, no Centro. A um quarteirão do prédio da Polícia Civil. Mas não estive com nenhum médico, não fui examinado por ninguém. Era um atestado falso. Foi mais fácil do que pensei, infelizmente. Da primeira abordagem que fiz até estar com o documento fraudado em mãos, gastei menos de uma hora.
O homem que me vendeu o papel usa o crachá de uma das várias clínicas que realizam exames trabalhistas. Vamos chamá-lo de “O Vendedor”. Ele organiza a entrada de pacientes e é também segurança do local. A transação é feita do lado de fora, com uma aparente tranquilidade do negociador.
Apesar de “O Vendedor” afirmar duas vezes que obtivera o atestado com um médico da própria clínica, o cabeçalho do atestado é da Secretaria Estadual da Saúde. A impressão parece ter sido cópia da cópia, o logotipo da Secretaria está bem escurecido e os dizeres também mostram borrões.
Apesar de “O Vendedor” afirmar duas vezes que obtivera o atestado com um médico da própria clínica, o cabeçalho do atestado é da Secretaria Estadual da Saúde. A impressão parece ter sido cópia da cópia, o logotipo da Secretaria está bem escurecido e os dizeres também mostram borrões.
prova da fraude: o carimbo do documento tem o nome de uma médica pediatra, que não atende naquela clínica nem em outra porque atua apenas como gestora hospitalar desde 2009 e é professora universitária. Nem a assinatura do atestado confere com a dela.
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A médica pediu para não ter o nome divulgado. O POVO também opta por não identificar a clínica por não ter como comprovar o envolvimento na falsificação.
O secretário geral do Conselho Regional de Medicina (Cremec), Lino Holanda, não se disse surpreso com o caso. “Há anos enfrentamos esse problema. Vejo que tem quadrilhas fazendo isso. E já informamos à Polícia a respeito”. Holanda afirma que nem pode haver formulário de atestado de um serviço público sendo usado em clínica particular.
Paguei R$ 60 por dois dias de “liberação médica”. Poderia ser até de 20 dias, segundo “O Vendedor”.
- Cada dia é 30 reais.
Um dia é 30, dois é 60, três é 90.
Vai querer de quantos dias?
Pechinchei duas vezes para que deixasse por R$ 50, levei dois nãos. A “folga” seria para a Quarta-Feira de Cinzas e o dia seguinte, 10 e 11 de fevereiro. Foi um atestado pré-datado, ainda estávamos no dia 3 de fevereiro quando comprei.
- Põe infecção urinária. Ou bota dor na coluna? Tu que sabe.
Apesar das sugestões do “Vendedor”, decidi que seria “virose”. No documento comprado, houve o cuidado, inclusive, de ser preenchido corretamente o número “B-34”, da tabela CID-10 (Classificação Internacional de Doenças). Indicação de que eu supostamente estaria com “doença por vírus, de localização não especificada”.
Para testar ainda mais a fraude, inventei na hora um nome falso: “Marcelo de Freitas Ramos”. Escrevi num papel e passei. Poderia ter indicado qualquer nome. Em momento nenhum, importante ressaltar, “O Vendedor” me pediu a identidade para checar se era, de fato, como me chamava. E voltou a ser enfático.
- Bota teu nome completo, bem direitim aí, viu?
Do jeito que vai sair no atestado.
“O Vendedor” até se gaba do que faz e da clientela que tem.
- Ah, o pessoal da Polícia Militar pega comigo.
Agente penitenciário, guarda municipal pega comigo.
Ele disse que havia acabado de passar um atestado de 15 dias para uma vendedora de loja.
- Ela pediu um de 15 dias pra poder viajar. Mas foi num instante. Passei por debaixo dos panos. Não pode dar, né?
Não cheguei a ver quem, de fato, preenche o documento. Logo que lhe passei “meu” nome, ele pediu um tempo para ir buscar o atestado. Disse que iria na clínica e que eu esperasse no calçadão. Trouxe o papel dobrado, dentro do bolso. Parecia estar mais desconfiado do que quando saiu para preparar o documento.
Perguntei dos riscos. “Dá ‘bode’ não?”, questionei, até por ser a venda e a entrega ali no meio da calçada cheia, entre pedestres e vendedores ambulantes, e tão próximo da sede da Polícia Civil.
- Dá bode nada. Tu é doido? Tu acha que vou botar um atestado pra dar bode pra ninguém? Se der, a gente diz na hora. Mas me dá logo o dinheiro aí. R$ 60, dois dias.
Antes de ser abordado pelo “Vendedor” sobre o que queria na clínica, cheguei a ir diretamente ao balcão. Perguntei se o local tinha atendimento ambulatorial e se cobrava pela liberação de atestado médico. A recepcionista disse apenas “aqui não tem isso, não”.
Perguntei ao “Vendedor” se poderia conseguir outros atestados, quando quisesse. Ele se pôs à disposição.
- Ó, pode marcar comigo em tal canto que vou lá e te entrego outro atestado. Não tem bicho, não.
Bastidores
1. Para garantir prova sobre o comércio de atestados médicos falsos, o repórter usou um gravador escondido para captar o áudio da conversa com o “Vendedor”. Vários trechos ficaram inaudíveis.
2. Antes de admitir que negociava atestados falsos, “O Vendedor” sugeriu que o repórter acessasse uma pequena escadaria ao lado de uma lanchonete próxima. Apontou que lá “um rapaz” também teria o atestado que quisesse. Mas, depois, ele próprio topou a venda.
3. Havia indicação de atestados falsos sendo vendidos ainda mais baratos, a R$ 10 por dia, na Praça da Lagoinha, também no Centro. O outro vendedor indicado não foi localizado.
4. Entre os atestados falsificados manuseados pelo O POVO, ao longo da apuração, apareceram sempre cabeçalhos de unidades públicas de saúde: Frotinha da Parangaba, Frotinha de Messejana, UPA de Messejana, Secretaria Estadual da Saúde, Hospital Geral de Fortaleza e Hospital do Coração de Messejana. Cópias grosseiras de possíveis formulários oficiais.
O POVO onlineConfira entrevista com o médico Lino Holanda, secretário-geral do Cremec em www.opovo.com.br
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